top
black
black
image textos
line vert   APRESENTAÇÃO | EQUIPA DE INVESTIGAÇÃO | CALENDÁRIO DE INICIATIVAS | O CORPUS DOS BONECOS | TEXTOS | LINKS
line
 TEXTOS > JOSÉ ALBERTO FERREIRA > 01
line
ANA MARGARIDA PEREIRA
01. A elaboração das fichas
line
Brunella Eruli
01. La marionnette: paroles, bruits, musique
line
Christine Zurbach
01. Erudito e popular: a recepção teatral dos “Bonecos de Santo Aleixo”.
Algumas notas para a sua investigação.

02. Bonecos de Santo Aleixo (BSA) / CENDREV: dados de um percurso
(com Paula Seixas)
line
DIANA REGAL
01. Os Bonecos de Santo Aleixo um parente próximo das Bonecas Tradicionais Populares Portuguesas
line
PAULA SEIXAS
01. Bonecos de Santo Aleixo (BSA) / CENDREV: dados de um percurso
(com Christine Zurbach)
line
John McCormick
01. The music of the popular puppet theatre in 19th-century England
line
JOSÉ Alberto Ferreira
01. Da cortiça ao digital: a questão do arquivo
para o estudo dos Bonecos de Santo Aleixo
line





 
line vert

Da cortiça ao digital:
a questão do arquivo

para o estudo dos Bonecos de Santo Aleixo

JOSÉ ALBERTO FERREIRA
Universidade de Évora
BIME_05



… até parece que a alma de arame, no corpo de cortiça, lhe infunde verdadeiro espírito e novo alento
Dedicatória à mui nobre senhora Pecúnia Argentina (António José da Silva)*


0. Começo por clarificar o sentido do título desta comunicação. Não se trata, como poderia pensar-se, de propor, à luz de uma qualquer fórmula (teria de ser mágica!), a passagem ao regime digital dos Bonecos de Santo Aleixo.
Trata-se, tão só, de interrogar o lugar que podem ter as novas tecnologias, a cultura digital e o ciberespaço, na preservação, divulgação e investigação desta forma tradicional. É preciso ainda dizer que os objectivos aqui enunciados encontram acolhimento no âmbito do projecto de investigação Os bonecos de Santo Aleixo no passado e presente do teatro em Portugal, em cujo seio reside a proposta (programática) de criação de um instrumento digital de investigação (e divulgação) dos Bonecos de Santo Aleixo. É, portanto, fundamentalmente para esse contexto que tento dirigir a minha reflexão.

1. A proposta pode resumir-se, embora simplificando: como abordar as relações entre a vertente patrimonial e espectacular dos BSA e a disponibilização de materiais que possibilitem e potenciem a sua investigação (dentro e além desse quadro)?
Isto é, como disponibilizar os textos que a tradição preservou e o Cendrev tão denondadamente tem sabido manter? Como dar respostas à investigação sobre os bonecos eles mesmos? Medidas, cores, materiais? Como responder à dimensão local desta manifestação cultural num tempo de cultura global?
As respostas que têm sido dadas não são despiciendas: os BSA correram já mundo (com espectáculos por Portugal e por todo o mundo); linhas de investigação já deram frutos, com edição de livros (Zurbach, ed., A. Passos), revistas (Adágio). Os fundos sonoros estão gravados e disponíveis para consulta. E por fim, mas não menos importante, o Cendrev continua a fazer espectáculos e a promover — em estreita articulação com a Universidade — a formação com os BSA, como os alunos da LET podem testemunhar.

A hipótese do digital é, portanto, só uma das possibilidades a apontar. No âmbito historiográfico, por exemplo, têm sido muitos os avanços neste domínio, existindo na WWWeb um bom conjunto de sites de referência (associados a museus e a universidades, por exemplo).
Cfr. Thomas F. Heck, 2001, onde transversalmente se analisam estas questões em torno da iconografia (para a História da arte, do teatro, da música, etc.). Cfr. ainda Stoian, 2002, para uma análise de arquivos de artes performativas contemporâneos.

2. Que é um arquivo (hoje)?

E de que falamos quando falamos de arquivo? A imagem dominante é, ainda, a do território empoeirado, onde arqueologia, conservação e restauro, com funções jurídicas e políticas reconhecíveis, têm lugar cativo.

Mas o conceito e as práticas do ‘Arquivo’ têm, nos últimos anos, sido objecto de fortíssima reformulação, maioritariamente em resultado da pressão dos new media e dos suportes digitais. A net (WWWeb) e as suas variantes no ciberespaço (das redes globais aos stand-alone media, como cd e dvd-rom)(1) criaram as condições para se constituírem num enorme ‘palco’ de todas as possibilidades arquivísticas. Exemplo disso mesmo são os infindáves sites de companhias de teatro, museus, estruturas de produção e de programação, de publicações on-line que, inicialmente orientados para a divulgação e informação, se tornaram simultaneamente em instrumentos dessa divulgação e informação e em ‘arquivos abertos’ em permanente construção, facultando fotografias, filmes (ou excertos de filmes), textos, animações, etc.
Neste tempo, que Lev Manovich baptizou já como da “geração flash” (referindo-se ao progressivo uso do flash na programação de sites e nas linguagens de animação), o streaming de ficheiros de vídeo e de som, bem como a disponibilização de textos aos mais diversos niveis (críticos, jornalísticos, teóricos), isto é, os documentos de que o arquivo se vai fazendo, acumulam-se e diversificam-se numa cadência vertiginosa, cumprindo os princípios dos new media (também enunciados por Manovich): o princípio da automação (de acordo com o qual as máquinas geram, também elas, materiais); o princípio da variabilidade (a web potencia a permanente actualização, permitindo uma sucessão quase infinita de versões dos seus objectos), o princípio da representação digital (que identifica a natureza imaterial, numérica, algorítmica, dos seus objectos).

As mutações (ou revoluções) do arquivo digital aproximam-no da definição que dele dava Michel Foucault, que o pensava como «o sistema que regula a realização de enunciados» [system that governs the appearence of statements] (Arqueologia do saber). Portanto, trata-se, em rigor, de inscrever no arquivo e pelo arquivo as condições de interpelação do campo contemporâneo das artes performativas, dos suportes de que se serve, da(s) forma(s) como interpela a(s) comunidade(s) a que se destina.

Com a pressão da cibercultura entram em cena as possibilidades gerativas (criadoras) da automação, as virtualidades da variabilidade, as representações de escalas distintas, a economia do imaterial.
Este arquivo, capaz de concitar todo o arsenal da cultura dos media — da narrativa multimédia às ligações hipertextuais —  e de com essa instrumentação reformular os modos do registo (da fotografia ao vídeo, da gravação sonora às performances digitais (cfr., e. g. os trabalhos a que Gómez Peña chama video graffitis), encontra, face às artes performativas, um dos seus maiores desafios: o de afrontar a dimensão ‘efémera, única e irrepetível das artes de palco.
Se não, vejamos. Se por um lado, no ciberespaço contemporâneo, o arquivo ocupa uma posição dominante nos sistemas de documentação das artes performativas, com reconhecidas vantagens (e. g. a disponibilização de material, a circulação rápida entre arquivos, a possibilidade de comparar, coleccionar, etc.), por outro lado, a tipologia de registos de que este arquivo se faz e o tempo em que se faz (refiro-me à enorme proximidade  entre a realização do espectáculo e a sua constituiçã em material de arquivo [uma aceleração de tempo só permitida pela sobreposição das funções informativa e arquivística), a tipologia de registos e o tempo da sua constituição, dizia, alimentam o espectro da competição entre o mediatizado e o ‘ao vivo’. Nesse contexto, as leituras do objecto arquivado parecem substituir-se / confundir-se com os objectos em si. O que tem, de algum modo, o efeito perverso de fazer recusar o arquivo cibernético em nome da salvaguarda do ‘ao vivo’.
Ora, como mostrou, com profundidade analítica e cópia de argumentos, Philip Auslander (1999), a mediatização não é da ordem da ontologia, mas da ordem da historicidade. O que significa, segundo Auslander, que a mediatização não perturba (corrompe) a ontologia do performativo (do ao vivo), antes pode aparecer como constitutivamente sua no contexto de uma cultura fortemente mediatizada como a contemporânea.

[Não é possível desenvolver a questão aqui. Refira-se de qualquer modo, o debate que opôs Ph. Auslander e P. Phelan, sobre a natureza histórica ou ontológica da oposição ‘ao vivo’ vs mediatizado].
Mais: um número crescente de investigadores tende a ler as possibilidades do digital como performativo, relevando exactamente a sua condição mediatizada. Afirma Auslander:
…uma performance com base na internet seria [constituída por] um site onde exactamente acontece a performance (2)
Ou, ainda a título de exemplo, veja-se a posição de Linda Cassens Stoian:
No futuro próximo, os utilizadores de arquivos de artes performativas […] poderão navegar num mar de sensações (Stoian, 2002)
In the near future, performance archive-users […] will be able to navigate in a sea of sensations (Stoian, 2002).
A atender a estas posições, trata-se efectivamente de acolher a revolução dos novos media, e de hipotizar, a partir deles, todo um campo de possibilidades para o arquivo e para o seu uso.

Em síntese: o arquivo cibernético configura, pelas razões antes apontadas, uma enorme mutação nos modos do arquivo, no perfil tipológico do documento arquivado, até na quantidade de (variantes) possíveis. Esta mutação desencadeia (desencadeou), no entanto, reacções e resistências  que vêem nela uma ameaça capaz de afrontar a própria natureza do objecto do arquivo. Porém, como mostrou Auslander, não é na mediatização que reside o problema, pois é da mediatização que emergem estas possibilidades.

3. Para um mapa de possibilidades

Resta aqui retomar a pergunta inicial: que possibilidades para um arquivo digital dos BSA? A resposta — a busca de uma resposta — procuro formulá-la através do ‘mapeamento’ de possibilidades do digital em face da cortiça.

Um mapeamento de processos / materiais a integrar um arquivo digital para o estudo dos BSA deveria, então, considerar as consequências dos novos meios de que se serve, isto é:

3.1. As possibilidades da variabilidade, da forma aberta do arquivo: o campo de investigação está em construção e as possibilidades de integração de pontos de vista, materiais e objectos melhor se entende se proceder como um ‘work in progress’;

3.2. As possibilidades da automação: para qualquer dos materiais documentais a integrar no arquivo, será necessário configurar sistemas de indexação e busca — genericamente, de base de dados — que permitam cruzamentos de informação, de critérios e de materiais (de outro modo dificilmente identificáveis ou disponíveis);

3.3. As possibilidades de representação arquivística de acordo com escalas, registos e objectivos diferenciados. Uma marioneta pode ser representada como constituída por elementos discretos, como parte de uma série, em articulação com conteúdos textuais. Pode apresentar-se numa visão de conjunto e / ou em segmentos constitutivos, em registos vídeo (fotográfico, etc.) documentais ou funcionais, em animação digital ou captada em contexto espectacular. Quantas mais perspectivas se incluirem, mais potencialidades resultarão do arquivo.

Em síntese, estas 3 ordens de factores constituem as grandes linhas de um arquivo digital votado ao estudo dos BSA, objectivo que, de qualquer modo, se encontra aqui muito ampliado no seu alcance. Da cortiça ao digital, os caminhos não serão isentos de escolhos, de receios e de erros. Mas é de uns e de outros que a investigação se faz.
Há aguns anos (1989), Gil Salgueiro Nave sublinhava, num texto que evidenciava a condição de sobrevivência patrimonial dos BSA, sublinhava, dizia, a
Estranheza que hoje provoca o contacto com um espectáculo que ao longo de, pelo menos, dois séculos não sofreu alterações de tipo material, permanecendo insensível aos avanços tecnológicos que o mundo conheceu entretanto (apud Passos, 1999: 223).
À luz de hoje, creio que podemos partilhar uma estranheza idêntica. Mas duplamente: pela sobrevivência imudada, sim, mas também pelo que fosse ainda ‘permanecer insensível’ às mudanças que o mundo conheceu entretanto. E que todos os dias colocam o digital ao alcance da nossa mão.

(1) Cfr. a definição de ciberespaço que dá Philip Auslander: «[…] the whole realm of digital media and information technologies, including both global networks such as Internet and www, and stand-alone media such as CD-ROM» (2001: 123a).

(2) «[…] web-based performance venue would be a website that is the scene in which the performance actually takes place. […] A website presenting live, streamed video of performances would qualify, in my view. Even though the live performance is taking place at another venue, cyberspace is the venue for the streamed version. Even performance recorded on video then presented on a website would count, though if the video is permanently available to be accessed on the site, we are back in the realm of the arquive» (Auslander, 2001: 124a).


Bibliografia citada
Auslander, Philip
1999    Liveness. Performance in a mediatized culture. Londres, Routledge.
2001    «Cyberspace as a performance art venue», Performance Research, (6: 2).
Heck, Thomas F. (ed.)
1999    Picturing performance. Rochester, U. of Rochester Press.
Manovich, Lev
2000    The language of new media. Londres e Cambridge, Massaschussets, The MIT Press.
Passos, Alexandre
1999    Bonecos de Santo Aleixo. As marionetas em Portugal nos séculos XVI a XVIII e a sua influência nos títeres alentejanos. Évora, Cendrev.
Stoian, Linda Cassens
2002        «Learning performance by doing archiving performance», Performance Research, (7: 4).
black