Da
cortiça ao digital:
a questão do arquivo
para o estudo dos Bonecos de Santo Aleixo
JOSÉ ALBERTO FERREIRA
Universidade de Évora
BIME_05
… até parece que a alma de arame, no corpo de cortiça, lhe
infunde verdadeiro espírito e novo alento
Dedicatória à mui nobre senhora Pecúnia Argentina (António
José da Silva)*
0. Começo por clarificar o sentido do título desta comunicação.
Não se trata, como poderia pensar-se, de propor, à luz de uma qualquer
fórmula (teria de ser mágica!), a passagem ao regime digital dos
Bonecos de Santo Aleixo.
Trata-se, tão só, de interrogar o lugar que podem ter as novas
tecnologias, a cultura digital e o ciberespaço, na preservação,
divulgação e investigação desta forma tradicional. É preciso
ainda dizer que os objectivos aqui enunciados encontram acolhimento no âmbito
do projecto de investigação Os bonecos de Santo Aleixo no passado
e presente do teatro em Portugal, em cujo seio reside a proposta (programática)
de criação de um instrumento digital de investigação
(e divulgação) dos Bonecos de Santo Aleixo. É, portanto,
fundamentalmente para esse contexto que tento dirigir a minha reflexão.
1. A proposta pode resumir-se, embora simplificando: como abordar as relações
entre a vertente patrimonial e espectacular dos BSA e a disponibilização
de materiais que possibilitem e potenciem a sua investigação (dentro
e além desse quadro)?
Isto é, como disponibilizar os textos que a tradição preservou
e o Cendrev tão denondadamente tem sabido manter? Como dar respostas à investigação
sobre os bonecos eles mesmos? Medidas, cores, materiais? Como responder à dimensão local desta
manifestação cultural num tempo de cultura global?
As respostas que têm sido dadas não são despiciendas: os
BSA correram já mundo (com espectáculos por Portugal e por todo
o mundo); linhas de investigação já deram frutos, com edição
de livros (Zurbach, ed., A. Passos), revistas (Adágio). Os fundos
sonoros estão gravados e disponíveis para consulta. E por fim,
mas não menos importante, o Cendrev continua a fazer espectáculos
e a promover — em estreita articulação com a Universidade — a
formação com os BSA, como os alunos da LET podem testemunhar.
A hipótese do digital é, portanto, só uma das possibilidades
a apontar. No âmbito historiográfico, por exemplo, têm sido
muitos os avanços neste domínio, existindo na WWWeb um bom conjunto
de sites de referência (associados a museus e a universidades, por exemplo).
Cfr. Thomas F. Heck, 2001, onde transversalmente se analisam estas questões
em torno da iconografia (para a História da arte, do teatro, da música,
etc.). Cfr. ainda Stoian, 2002, para uma análise de arquivos de artes
performativas contemporâneos.
2. Que é um arquivo (hoje)?
E de que falamos quando falamos de arquivo? A imagem dominante é, ainda,
a do território empoeirado, onde arqueologia, conservação
e restauro, com funções jurídicas e políticas reconhecíveis,
têm lugar cativo.
Mas o conceito e as práticas do ‘Arquivo’ têm, nos últimos
anos, sido objecto de fortíssima reformulação, maioritariamente
em resultado da pressão dos new media e dos suportes digitais.
A net (WWWeb) e as suas variantes no ciberespaço (das redes globais aos stand-alone media,
como cd e dvd-rom)(1) criaram as condições para se constituírem num enorme ‘palco’ de
todas as possibilidades arquivísticas. Exemplo disso mesmo são
os infindáves sites de companhias de teatro, museus, estruturas de produção
e de programação, de publicações on-line que, inicialmente
orientados para a divulgação e informação, se tornaram
simultaneamente em instrumentos dessa divulgação e informação
e em ‘arquivos abertos’ em permanente construção, facultando
fotografias, filmes (ou excertos de filmes), textos, animações,
etc.
Neste tempo, que Lev Manovich baptizou já como da “geração
flash” (referindo-se ao progressivo uso do flash na programação
de sites e nas linguagens de animação), o streaming de
ficheiros de vídeo e de som, bem como a disponibilização
de textos aos mais diversos niveis (críticos, jornalísticos, teóricos),
isto é, os documentos de que o arquivo se vai fazendo, acumulam-se e diversificam-se
numa cadência vertiginosa, cumprindo os princípios dos new media (também
enunciados por Manovich): o princípio da automação (de acordo
com o qual as máquinas geram, também elas, materiais); o princípio
da variabilidade (a web potencia a permanente actualização, permitindo
uma sucessão quase infinita de versões dos seus objectos), o princípio
da representação digital (que identifica a natureza imaterial,
numérica, algorítmica, dos seus objectos).
As mutações (ou revoluções) do
arquivo digital aproximam-no da definição que
dele dava Michel Foucault, que o pensava como «o sistema
que regula a realização de enunciados» [system
that governs the appearence of statements] (Arqueologia
do saber). Portanto, trata-se, em rigor, de inscrever no arquivo
e pelo arquivo as condições de interpelação
do campo contemporâneo das artes performativas, dos suportes
de que se serve, da(s) forma(s) como interpela a(s) comunidade(s)
a que se destina.
Com a pressão da cibercultura entram em cena as possibilidades
gerativas (criadoras) da automação, as virtualidades
da variabilidade, as representações de escalas
distintas, a economia do imaterial.
Este arquivo, capaz de concitar todo o arsenal da cultura dos media — da
narrativa multimédia às ligações hipertextuais — e
de com essa instrumentação reformular os modos do registo (da
fotografia ao vídeo, da gravação sonora às performances
digitais (cfr., e. g. os trabalhos a que Gómez Peña chama video
graffitis), encontra, face às artes performativas, um dos seus maiores
desafios: o de afrontar a dimensão ‘efémera, única
e irrepetível das artes de palco.
Se não, vejamos. Se por um lado, no ciberespaço contemporâneo,
o arquivo ocupa uma posição dominante nos sistemas de
documentação das artes performativas, com reconhecidas vantagens
(e. g. a disponibilização de material, a circulação
rápida entre arquivos, a possibilidade de comparar, coleccionar, etc.),
por outro lado, a tipologia de registos de que este arquivo se faz e
o tempo em que se faz (refiro-me à enorme proximidade entre
a realização do espectáculo e a sua constituiçã em
material de arquivo [uma aceleração de tempo só permitida
pela sobreposição das funções informativa e arquivística),
a tipologia de registos e o tempo da sua constituição, dizia, alimentam
o espectro da competição entre o mediatizado e o ‘ao
vivo’. Nesse contexto, as leituras do objecto arquivado parecem substituir-se
/ confundir-se com os objectos em si. O que tem, de algum modo, o efeito perverso
de fazer recusar o arquivo cibernético em nome da salvaguarda do ‘ao
vivo’.
Ora, como mostrou, com profundidade analítica e cópia de argumentos,
Philip Auslander (1999), a mediatização não é da
ordem da ontologia, mas da ordem da historicidade. O que significa, segundo Auslander,
que a mediatização não perturba (corrompe) a ontologia do
performativo (do ao vivo), antes pode aparecer como constitutivamente sua no
contexto de uma cultura fortemente mediatizada como a contemporânea.
[Não é possível desenvolver a questão aqui. Refira-se
de qualquer modo, o debate que opôs Ph. Auslander e P. Phelan, sobre a
natureza histórica ou ontológica da oposição ‘ao
vivo’ vs mediatizado].
Mais: um número crescente de investigadores tende a ler as possibilidades
do digital como performativo, relevando exactamente a sua condição
mediatizada. Afirma Auslander:
…uma performance com base na internet seria [constituída
por] um site onde exactamente acontece a performance (2)
Ou, ainda a título de exemplo, veja-se a posição de Linda
Cassens Stoian:
No futuro próximo, os utilizadores de arquivos de artes performativas
[…] poderão navegar num mar de sensações (Stoian,
2002)
In the near future, performance archive-users […] will be able to navigate
in a sea of sensations (Stoian, 2002).
A atender a estas posições, trata-se efectivamente de acolher a
revolução dos novos media, e de hipotizar, a partir deles,
todo um campo de possibilidades para o arquivo e para o seu uso.
Em síntese: o arquivo cibernético configura, pelas razões
antes apontadas, uma enorme mutação nos modos do arquivo, no perfil
tipológico do documento arquivado, até na quantidade de (variantes)
possíveis. Esta mutação desencadeia (desencadeou), no entanto,
reacções e resistências que vêem nela uma ameaça
capaz de afrontar a própria natureza do objecto do arquivo. Porém,
como mostrou Auslander, não é na mediatização
que reside o problema, pois é da mediatização que
emergem estas possibilidades.
3. Para um mapa de possibilidades
Resta aqui retomar a pergunta inicial: que possibilidades
para um arquivo digital dos BSA? A resposta — a busca
de uma resposta — procuro formulá-la através
do ‘mapeamento’ de possibilidades do digital
em face da cortiça.
Um mapeamento de processos / materiais a integrar um arquivo digital para o estudo
dos BSA deveria, então, considerar as consequências dos novos
meios de que se serve, isto é:
3.1. As possibilidades da variabilidade, da forma aberta do arquivo: o campo
de investigação está em construção e as possibilidades
de integração de pontos de vista, materiais e objectos melhor se
entende se proceder como um ‘work in progress’;
3.2. As possibilidades da automação: para qualquer dos materiais
documentais a integrar no arquivo, será necessário configurar sistemas
de indexação e busca — genericamente, de base de dados — que
permitam cruzamentos de informação, de critérios e de materiais
(de outro modo dificilmente identificáveis ou disponíveis);
3.3. As possibilidades de representação arquivística de
acordo com escalas, registos e objectivos diferenciados. Uma marioneta pode ser
representada como constituída por elementos discretos, como parte de uma
série, em articulação com conteúdos textuais. Pode
apresentar-se numa visão de conjunto e / ou em segmentos constitutivos,
em registos vídeo (fotográfico, etc.) documentais ou funcionais,
em animação digital ou captada em contexto espectacular. Quantas
mais perspectivas se incluirem, mais potencialidades resultarão do arquivo.
Em síntese, estas 3 ordens de factores constituem as grandes linhas de
um arquivo digital votado ao estudo dos BSA, objectivo que, de qualquer modo,
se encontra aqui muito ampliado no seu alcance. Da cortiça ao digital,
os caminhos não serão isentos de escolhos, de receios e de erros.
Mas é de uns e de outros que a investigação se faz.
Há aguns anos (1989), Gil Salgueiro Nave sublinhava, num texto que evidenciava
a condição de sobrevivência patrimonial dos BSA, sublinhava,
dizia, a
Estranheza que hoje provoca o contacto com um espectáculo que ao longo
de, pelo menos, dois séculos não sofreu alterações
de tipo material, permanecendo insensível aos avanços tecnológicos
que o mundo conheceu entretanto (apud Passos, 1999: 223).
À luz de hoje, creio que podemos partilhar uma estranheza
idêntica. Mas duplamente: pela sobrevivência
imudada, sim, mas também pelo que fosse ainda ‘permanecer
insensível’ às mudanças que o
mundo conheceu entretanto. E que todos os dias colocam o
digital ao alcance da nossa mão.
(1)
Cfr. a definição de ciberespaço
que dá Philip Auslander: «[…] the
whole realm of digital media and information technologies,
including both global networks such as Internet and
www, and stand-alone media such as CD-ROM» (2001:
123a).
(2) «[…]
web-based performance venue would be a website that
is the scene in which the performance actually takes
place. […] A website presenting live, streamed
video of performances would qualify, in my view. Even
though the live performance is taking place at another
venue, cyberspace is the venue for the streamed version.
Even performance recorded on video then presented on
a website would count, though if the video is permanently
available to be accessed on the site, we are back in
the realm of the arquive» (Auslander, 2001: 124a).
Bibliografia citada
Auslander, Philip
1999 Liveness. Performance in a mediatized culture.
Londres, Routledge.
2001 «Cyberspace as a performance art venue», Performance
Research, (6: 2).
Heck, Thomas F. (ed.)
1999 Picturing performance. Rochester, U. of Rochester
Press.
Manovich, Lev
2000 The language of new media. Londres e Cambridge,
Massaschussets, The MIT Press.
Passos, Alexandre
1999 Bonecos de Santo Aleixo. As marionetas em Portugal
nos séculos XVI a XVIII e a sua influência nos títeres alentejanos. Évora,
Cendrev.
Stoian, Linda Cassens
2002 «Learning performance by
doing archiving performance», Performance Research, (7: 4).
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