Os
Bonecos de Santo Aleixo um parente próximo das Bonecas
Tradicionais Populares Portuguesas
DIANA REGAL
A natureza popular e a total manufactura dos
Bonecos de Santo Aleixo fazem deles um parente próximo das
Bonecas tradicionais populares portuguesas. Os dois representam
figuras de quadros familiares, sociais, profissionais, políticos
e religiosos retirados de um contexto determinado, uma comunidade,
aldeia ou povoação e aproximam-se sobretudo pela
comum reutilização de materiais e pela semelhança
nas técnicas de construção. Resultam ambos
do aproveitamento e da transformação de recursos
naturais e de objectos do quotidiano.
Ainda à semelhança de alguns géneros de
bonecas artesanais, nomeadamente as que recorrem a materiais
mistos (madeira e tecido), os Bonecos de Santo Aleixo são
gerados certamente por um pai e por uma mãe. À mulher
diz respeito o trabalho dos tecidos e passamanarias (trapos,
rendinhas e fitinhas guardados religiosamente para uma necessidade,
dando razão à voz do povo que diz quem guarda
tem), na construção plástica da figura,
mas também e, não menos importante, no desenho
antropomórfico dos braços e das pernas.
Ao homem cabe trabalhar a cortiça para o tronco, a madeira
para cabeça, mãos (pontualmente), botinas e alguns
adereços, e o arame - vareta de metal que faz de coluna
vertebral, atravessando a cabeça e garantindo a articulação
do boneco.
Uma característica importante das bonecas populares é a
representação do cabelo. Com quase nada constrõem-se
as mais elaboradas cabeleiras, recorrendo a fios de lã,
penas, tecidos, fibras animais e vegetais e até palha
de aço. É também com este pressuposto
que são feitos os cabelos dos Bonecos de Santo Aleixo,
com o pêlo e a pele de animal, cabelo natural, linhas
e cordões finos emaranhados apetrechados com adereços
de cabeça feitos em feltro, couro, cartão revestido
a tecido, rolhas de plástico e caricas.
Bonecas, bonecos
e outros vão assim acompanhando gerações
e gerações de uma comunidade restrita e os modos
de os fazer e de os usar vão sendo transmitidos pelos
mais velhos e experientes para os mais novos, com uma actualização
das técnicas e materiais daquele momento, perpetuando
a tradição, ou seja, perpetuando a arte de
fazer e a arte de utilizar(1).
Materiais e técnicas de construção
dos Bonecos de Santo Aleixo
No que respeita às técnicas de construção,
os Bonecos de Santo Aleixo fazem-se com cortiça para
o tronco, talhado em forma de paralelipípedo, às
vezes com ligeiros encaixes nas zonas das cavas e virilhas
para a afixação dos braços e das pernas — estes
feitos com uma técnica muito comum na construção
das bonecas de trapos da região do Alentejo, o enrolamento
de tecido (um bocado de tecido do comprimento pretendido, em
função do comprimento dos braços e das
pernas, é enrolado e cosido). A costura que une a orla
do tecido ao rolinho é feita de modo a desenhar ou modelar
a forma do braço e, principalmente, da perna. Mais larga
na zona da coxa, vai estreitando através do arrepanhamento
do tecido até ao tornozelo, onde encaixam as botinas,
(as extremidades inferiores dos bonecos representam uma bota
fina de tacão, são poucas as figuras que têm
pé de madeira com pormenor dos dedos, como por exemplo
as figuras religiosas primordiais, Adão, Eva e o menino
Jesus). As mãos de pele (cabedal), por vezes de madeira
ou cartão, são cosidas ou atadas nas extremidades
dos braços. Uma outra técnica usada sobretudo
para a construção das pernas é o enchimento
de tecido.
A presença de mãos e pés é pouco
frequente nas bonecas artesanais da região do Alentejo
e mesmo do país, mas nos Bonecos de Santo Aleixo estes
elementos existem sempre, são elementos fundamentais
para a uniformização do conjunto dos bonecos
e facilitam o seu manuseamento, como objectos cénicos,
dando-lhes peso, estabilidade e equilibrio e a possibilidade
de produzir os sons do movimento de caminhar, no caso das botinas.
São, por fim, vestidos com guarda-roupa cuidado, de
acordo com as características das figuras/personagens,
com mais ou menos rigor na reconstrução das indumentárias,
mas sempre bem ataviados.
O tecido nos Bonecos de Santo Aleixo
O recurso
ao tecido nas bonecas tradicionais populares em geral, assim
como nos Bonecos de Santo Aleixo, serve a diversos fins. Com
grandes propriedades de modelação,
o tecido serve para chegar à forma antropomórfica,
através do corte, da cosedura, do arrepanhamento e também
do enchimento. Temos, nas figuras masculinas, o empastamento
da caixa torácica e pontualmente de corcunda e, nas
figuras femininas, o enchimento na região mamal.
Uma outra característica do tecido é o fácil
convívio com outros materiais (os já mencionados
madeira, cortiça, metal e o plástico, usado para
saiotes, conferindo volume e rigidez à saia de fora,
juntando-se a eles por cosedura, atadura e, pontualmente, colagem).
Aliada incondicional do tecido é a linha que, além
de coser, bordar, tricotar, atar, unir prender e fixar,
quando emaranhada produz uma excelente cabeleira de mulher.
A mais comum utilização de tecido, mas não
menos elaborada, dá-se na confecção das
peças de vestuário e acessórios, peças
de corte e cose ou peças tricotadas em fio de lã (como é o
caso de algumas camisolas feitas para o efeito), onde não
se dispensa o pormenor do debrum em tecido, renda, bordado
ou galão, e onde os modelos das roupas parecem ter saído
de um guarda-fatos de uma qualquer casa portuguesa dos meados
do século passado.
A realização plástica das figuras
míticas e religiosas nos Bonecos de Santo Aleixo
Ainda à semelhança de alguns géneros
de bonecas artesanais portuguesas, como as Marafonas, certos
bonecos do corpus dos Bonecos
de Santo Aleixo são representações de tradições
mítico-religiosas de que todas a cultura popular portuguesa está embrenhada
e que se reflecte através das crenças, mitos e ditos do nosso povo.
Deste modo, analisemos Adão e Eva, depois de expulsos
do Paraíso. Eva é condenada assim, pelo Padre Eterno (no auto
da criação do mundo):
E tu, Eva, com dores parirás os teus filhos. E serás sujeita às
obediências do tê marido e ele te dominará.
Adão, por sua vez, aparece com uma enxada, evidência da
sua condenação ao trabalho:
E tu, Adão, já que destes atenção à voz
da tua mulher, maldita será a terra em teu lavor. Espinhos
e abrolhos se hão-de produzir nela, e com o suor do tê rosto
comerás o pão até que tornes à terra.
Porque és pó, e és terra, e em pó te
há-des tornar,
Adão.(2)
Note-se que com Eva se evidenciam mais transformações,
mormente a que a equipara às Parcas e a designa por Fiandeira.
Veste roupa de trabalho e avental porque, tal como Adão,
está condenada à labuta do dia-a-dia: Deus
deu a Eva uma roca / Com linho p‘ra se vestir(3).
Mas a designação de Fiandeira tem ainda uma outra
leitura: Adão pôs à sua mulher o nome
de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes(4),
e o nascimento, a vida e a morte, em suma, o destino dos homens é presidido,
na mitologia clássica, pelas Moiras gregas, similares às
Parcas romanas, representadas por três irmãs fiandeiras:
a primeira é responsável pelo nascimento; a segunda,
responsável pelo destino, fia os acontecimentos da vida
dos homens; a terceira, responsável pela morte, corta
o fio da vida.
Tomemos também em consideração Nossa
Senhora, que é representada por uma figura feminina,
grávida numa determinada cena (um adereço que é um
pequena bola de lã que faz de barriga de grávida),
mas não tem mamas, ao contrário de todas as outras
figuras femininas (sem excepção), que apresentam
um enchimento em tecido na zona mamal. De aspecto igual à Lua,
Nossa Senhora veste-se com o mesmo tecido (tipo renda filé,
tecido fino e delicado com motivos florais, usado antigamente
para colchas e mantéis) e com a mesma peça de vestuário
(túnica cintada com mangas) que a Lua. Esta é igualmente
representada por uma figura de mulher, mas desta feita com enchimento
na zona mamal. Talvez remeta para Selene a divindade grega, análoga à romana
Lua (5).Lua e Nossa
Senhora parecem disputar deste modo a feminilidade, sendo
que a primeira, que por ser virgem, não amamenta, mesmo
albergando vida no ventre, pois é a mãe de Jesus
Cristo; a segunda é quem, de acordo com o texto, Dou
luz à cristandade / E só em mim Cristo governa (Auto
da criação do mundo).
O mesmo tecido e a mesma peça de vestuário são utilizados
pelos artesão dos bonecos para vestirem estas duas personagens mítico-religiosas,
atribuíndo-lhes o mesmo valor plástico.
Analisemos também a figura do Diabo, figura que se multiplica
por três bonecos. Representam a metamorfose de uma figura com traços
mais humanos numa outra mais animal com focinho, que por sua vez se metamorfoseia
numa terceira figura, de bico proeminente com traços completamente zoomórficos,
de acordo com o que parece(m) ser a(s) sua(s) entrada(s) em cena no Auto
da Criação do Mundo. A subdivisão em 3 figuras da personagem Diabo deve-se
a:
O número três marca Deus e o Diabo, como marca
o olhar do homem sobre o sobrenatural e o imaginário,
a religião, os mitos e as histórias tradicionais.
Lembremos que, nas duas versões de um provérbio
popular, “Três é o número que Deus
fez”, mas de igual modo “Três, o Diabo fez”,
sendo prova disso o múltiplo de três designado por “número
da Besta (6).
Ainda a respeito do Mal como a outra face do Bem temos a
figura de Caim, representado com duas faces: o Caim Bom e
o Caim Mau. O primeiro branco, o segundo preto. A este propósito
diz-nos Natália Constâncio, no seu B.I.
da Criação do Mundo:
A nossa tradição popular referencia a criação
do homem preto pela mão do invejoso Satanás, que
decide criar um ser para rivailzar com Deus(7).
No que respeita à construção plástica
das figuras masculinas nos Bonecos de Santo Aleixo temos um
trabalho elaborado ao nível da face de muito dos exemplares,
no que respeita à representação dos olhos,
orelhas, nariz e queixo, através da escultura, outros
através da pintura. Note-se que a presença de
orelhas, olhos e queixo esculpido não aparece em nenhum
exemplar de mulher e curiosamente nenhuma figura de homem tem
cabelo sem ser pintado. No entanto a diversidade de barbas,
bigodes, suíças e cabelos (2 exemplares calvos) é grande.
A lembrar quanto sumariou a propósito de barbas José Leite
de Vasconcelos (em A Barba em Portugal), com efectiva
aplicação ao corpus dos Bonecos de Santo
Aleixo:
A barba como símbolo de virilidade e de honra; (...)
Barba povoada e grave: em filósofos, em monges, em deuses,
em reis; Outras manifestações sociológicas
de barba: (...) castigos; A barba na opção jurídica;
O sobrenatural na barba: feitiço, lenda; A barba como
manifestação de tristeza (8).
Bibliografia:
Bonecos de Santo Aleixo (textos policopiados, Cendrev)
Constâncio, Natália, B. I. da Criação do Mundo, Lisboa,
Apenas Livros, 2004.
Guimarães, Ana Paula, B. I. do Zarapelho, Lisboa, Apenas Livros,
2004.
Meireles, Maria Teresa & Freitas, Ana Maria, Os dez mandamentos dos contos.
Lisboa, Apenas Livros, 2005.
Monteiro, D. António de Castro Xavier, Arcebispo de Mitilene (nihil
obstat), Biblia Sagrada, Lisboa, 1968.
Schmidt, Joel, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa,Edições
70, p. 243.
Tavares, Jorge Campos, Dicionário de Santos. Porto,Lello Editores,
2004.
Vasconcelos, José Leite de, Signum Salominis, A Figa;
A Barba em Portugal. Estudos de etnografia comparativa,
Colecção Portugal de perto. Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1996.
_______
(1) A
cultura popular (...) formula-se essencialmente em «artes
de fazer» isto ou aquilo (...). Estas práticas
põem em jogo uma ratio «Popular»,
uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, numa
arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.Ana
Paula Guimarães, B.I.do Zarapelho, Apenas
Livros, Lisboa, 2004, p.31, citando Michel de Certeau, L`nvention
du quotidien, I- Arts de faire. Paris 10/18, 1980,
p.15.
(2) Confronte-se
a condenação bíblica: «maldita
seja a terra por tua causa! E dela só arrancarás
alimento à custa de penoso trabalho, em todos os
dias da tua vida» (Bíblia Sagrada,
Génesis 3, 17).
(3)«Décimas
religiosas», em José Leite de Vasconcelos, Cancioneiro
Popular Português, vol. II, p. 480.
(4) Bíblia
Sagrada, Génesis 3, 20.
(5) «Selene
personifica a deusa Lua que, no céu grego reluz
com grande brilho. Tem os traços de uma mulher jovem
com o rosto de uma brancura reluzente (...)»,.Joel
Schmidt, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Edições
70, p. 243.
(6)Maria
Teresa Meireles, Ana Maria Freitas, Os dez mandamentos
dos contos, Apenas Livros, Lisboa, 2005, p. 59.
(7)Natália
Constâncio, B.I. da Criação do
Mundo,Apenas Livros, Lisboa, 2004, p. 33.
(8) José Leite
de Vasconcelos, Signum Salominis,
A Figa; A Barba em Portugal, Estudos de Etnografia
comparativa, Colecção Portugal de perto, Publicações
Dom Quixote, Lisboa, 1996, p. 361.
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