top
black
black
image textos
line vert   APRESENTAÇÃO | EQUIPA DE INVESTIGAÇÃO | CALENDÁRIO DE INICIATIVAS | O CORPUS DOS BONECOS | TEXTOS | LINKS
line
 TEXTOS > DIANA REGAL > 01
line
ANA MARGARIDA PEREIRA
01. A elaboração das fichas
line
Brunella Eruli
01. La marionnette: paroles, bruits, musique
line
Christine Zurbach
01. Erudito e popular: a recepção teatral dos “Bonecos de Santo Aleixo”.
Algumas notas para a sua investigação.

02. Bonecos de Santo Aleixo (BSA) / CENDREV: dados de um percurso
(com Paula Seixas)
line
DIANA REGAL
01. Os Bonecos de Santo Aleixo um parente próximo das Bonecas Tradicionais Populares Portuguesas
line
PAULA SEIXAS
01. Bonecos de Santo Aleixo (BSA) / CENDREV: dados de um percurso
(com Christine Zurbach)
line
John McCormick
01. The music of the popular puppet theatre in 19th-century England
line
JOSÉ Alberto Ferreira
01. Da cortiça ao digital: a questão do arquivo
para o estudo dos Bonecos de Santo Aleixo
line





 
line vert

Os Bonecos de Santo Aleixo um parente próximo das Bonecas Tradicionais Populares Portuguesas

DIANA REGAL


A natureza popular e a total manufactura dos Bonecos de Santo Aleixo fazem deles um parente próximo das Bonecas tradicionais populares portuguesas. Os dois representam figuras de quadros familiares, sociais, profissionais, políticos e religiosos retirados de um contexto determinado, uma comunidade, aldeia ou povoação e aproximam-se sobretudo pela comum reutilização de materiais e pela semelhança nas técnicas de construção. Resultam ambos do aproveitamento e da transformação de recursos naturais e de objectos do quotidiano.

Ainda à semelhança de alguns géneros de bonecas artesanais, nomeadamente as que recorrem a materiais mistos (madeira e tecido), os Bonecos de Santo Aleixo são gerados certamente por um pai e por uma mãe. À mulher diz respeito o trabalho dos tecidos e passamanarias (trapos, rendinhas e fitinhas guardados religiosamente para uma necessidade, dando razão à voz do povo que diz quem guarda tem), na construção plástica da figura, mas também e, não menos importante, no desenho antropomórfico dos braços e das pernas.

Ao homem cabe trabalhar a cortiça para o tronco, a madeira para cabeça, mãos (pontualmente), botinas e alguns adereços, e o arame - vareta de metal que faz de coluna vertebral, atravessando a cabeça e garantindo a articulação do boneco.
Uma característica importante das bonecas populares é a representação do cabelo. Com quase nada constrõem-se as mais elaboradas cabeleiras, recorrendo a fios de lã, penas, tecidos, fibras animais e vegetais e até palha de aço. É também com este pressuposto que são feitos os cabelos dos Bonecos de Santo Aleixo, com o pêlo e a pele de animal, cabelo natural, linhas e cordões finos emaranhados apetrechados com adereços de cabeça feitos em feltro, couro, cartão revestido a tecido, rolhas de plástico e caricas.

Bonecas, bonecos e outros vão assim acompanhando gerações e gerações de uma comunidade restrita e os modos de os fazer e de os usar vão sendo transmitidos pelos mais velhos e experientes para os mais novos, com uma actualização das técnicas e materiais daquele momento, perpetuando a tradição, ou seja, perpetuando a arte de fazer e a arte de utilizar(1).

Materiais e técnicas de construção dos Bonecos de Santo Aleixo
No que respeita às técnicas de construção, os Bonecos de Santo Aleixo fazem-se com cortiça para o tronco, talhado em forma de paralelipípedo, às vezes com ligeiros encaixes nas zonas das cavas e virilhas para a afixação dos braços e das pernas — estes feitos com uma técnica muito comum na construção das bonecas de trapos da região do Alentejo, o enrolamento de tecido (um bocado de tecido do comprimento pretendido, em função do comprimento dos braços e das pernas, é enrolado e cosido). A costura que une a orla do tecido ao rolinho é feita de modo a desenhar ou modelar a forma do braço e, principalmente, da perna. Mais larga na zona da coxa, vai estreitando através do arrepanhamento do tecido até ao tornozelo, onde encaixam as botinas, (as extremidades inferiores dos bonecos representam uma bota fina de tacão, são poucas as figuras que têm pé de madeira com pormenor dos dedos, como por exemplo as figuras religiosas primordiais, Adão, Eva e o menino Jesus). As mãos de pele (cabedal), por vezes de madeira ou cartão, são cosidas ou atadas nas extremidades dos braços. Uma outra técnica usada sobretudo para a construção das pernas é o enchimento de tecido.

A presença de mãos e pés é pouco frequente nas bonecas artesanais da região do Alentejo e mesmo do país, mas nos Bonecos de Santo Aleixo estes elementos existem sempre, são elementos fundamentais para a uniformização do conjunto dos bonecos e facilitam o seu manuseamento, como objectos cénicos, dando-lhes peso, estabilidade e equilibrio e a possibilidade de produzir os sons do movimento de caminhar, no caso das botinas.

São, por fim, vestidos com guarda-roupa cuidado, de acordo com as características das figuras/personagens, com mais ou menos rigor na reconstrução das indumentárias, mas sempre bem ataviados.

O tecido nos Bonecos de Santo Aleixo
O recurso ao tecido nas bonecas tradicionais populares em geral, assim como nos Bonecos de Santo Aleixo, serve a diversos fins. Com grandes propriedades de modelação, o tecido serve para chegar à forma antropomórfica, através do corte, da cosedura, do arrepanhamento e também do enchimento. Temos, nas figuras masculinas, o empastamento da caixa torácica e pontualmente de corcunda e, nas figuras femininas, o enchimento na região mamal.

Uma outra característica do tecido é o fácil convívio com outros materiais (os já mencionados madeira, cortiça, metal e o plástico, usado para saiotes, conferindo volume e rigidez à saia de fora, juntando-se a eles por cosedura, atadura e, pontualmente, colagem).

Aliada incondicional do tecido é a linha que, além de coser, bordar, tricotar, atar, unir prender e fixar, quando emaranhada produz uma excelente cabeleira de mulher.
A mais comum utilização de tecido, mas não menos elaborada, dá-se na confecção das peças de vestuário e acessórios, peças de corte e cose ou peças tricotadas em fio de lã (como é o caso de algumas camisolas feitas para o efeito), onde não se dispensa o pormenor do debrum em tecido, renda, bordado ou galão, e onde os modelos das roupas parecem ter saído de um guarda-fatos de uma qualquer casa portuguesa dos meados do século passado.

A realização plástica das figuras míticas e religiosas nos Bonecos de Santo Aleixo
Ainda à semelhança de alguns géneros de bonecas artesanais portuguesas, como as Marafonas, certos bonecos do corpus dos Bonecos de Santo Aleixo são representações de tradições mítico-religiosas de que todas a cultura popular portuguesa está embrenhada e que se reflecte através das crenças, mitos e ditos do nosso povo.
Deste modo, analisemos Adão e Eva, depois de expulsos do Paraíso. Eva é condenada assim, pelo Padre Eterno (no auto da criação do mundo):
E tu, Eva, com dores parirás os teus filhos. E serás sujeita às obediências do tê marido e ele te dominará.
Adão, por sua vez, aparece com uma enxada, evidência  da sua condenação ao trabalho:
E tu, Adão, já que destes atenção à voz da tua mulher, maldita será a terra em teu lavor. Espinhos e abrolhos se hão-de produzir nela, e com o suor do tê rosto comerás o pão até que tornes à terra. Porque és pó, e és terra, e em pó te há-des tornar, Adão.(2)

Note-se que com Eva se evidenciam mais transformações, mormente a que a equipara às Parcas e a designa por Fiandeira. Veste roupa de trabalho e avental porque, tal como Adão, está condenada à labuta do dia-a-dia: Deus deu a Eva uma roca / Com linho p‘ra se vestir(3). Mas a designação de Fiandeira tem ainda uma outra leitura: Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela seria mãe de todos os viventes(4), e o nascimento, a vida e a morte, em suma, o destino dos homens é presidido, na mitologia clássica, pelas Moiras gregas, similares às Parcas romanas, representadas por três irmãs fiandeiras: a primeira é responsável pelo nascimento; a segunda, responsável pelo destino, fia os acontecimentos da vida dos homens; a terceira, responsável pela morte, corta o fio da vida.

Tomemos também em consideração Nossa Senhora, que é representada por uma figura feminina, grávida numa determinada cena (um adereço que é um pequena bola de lã que faz de barriga de grávida), mas não tem mamas, ao contrário de todas as outras figuras femininas (sem excepção), que apresentam um enchimento em tecido na zona mamal. De aspecto igual à Lua, Nossa Senhora veste-se com o mesmo tecido (tipo renda filé, tecido fino e delicado com motivos florais, usado antigamente para colchas e mantéis) e com a mesma peça de vestuário (túnica cintada com mangas) que a Lua. Esta é igualmente representada por uma figura de mulher, mas desta feita com enchimento na zona mamal. Talvez remeta para Selene a divindade grega, análoga à romana Lua (5).Lua e Nossa Senhora parecem disputar deste modo a feminilidade, sendo que a primeira, que por ser virgem, não amamenta, mesmo albergando vida no ventre, pois é a mãe de Jesus Cristo; a segunda é quem, de acordo com o texto, Dou luz à cristandade / E só em mim Cristo governa (Auto da criação do mundo).

O mesmo tecido e a mesma peça de vestuário são utilizados pelos artesão dos bonecos para vestirem estas duas personagens mítico-religiosas, atribuíndo-lhes o mesmo valor plástico.

Analisemos também a figura do Diabo, figura que se multiplica por três bonecos. Representam a metamorfose de uma figura com traços mais humanos numa outra mais animal com focinho, que por sua vez se metamorfoseia numa terceira figura, de bico proeminente com traços completamente zoomórficos, de acordo com o que parece(m) ser a(s) sua(s) entrada(s) em cena no Auto da Criação do Mundo. A subdivisão em 3 figuras da personagem Diabo deve-se a:
O número três marca Deus e o Diabo, como marca o olhar do homem sobre o sobrenatural e o imaginário, a religião, os mitos e as histórias tradicionais. Lembremos que, nas duas versões de um provérbio popular, “Três é o número que Deus fez”, mas de igual modo “Três, o Diabo fez”, sendo prova disso o múltiplo de três designado por “número da Besta (6).

Ainda a respeito do Mal como a outra face do Bem temos a figura de Caim, representado com duas faces: o Caim Bom e o Caim Mau. O primeiro branco, o segundo preto. A este propósito diz-nos Natália Constâncio, no seu B.I. da Criação do Mundo:
A nossa tradição popular referencia a criação do homem preto pela mão do invejoso Satanás, que decide criar um ser para rivailzar com Deus(7).

No que respeita à construção plástica das figuras masculinas nos Bonecos de Santo Aleixo temos um trabalho elaborado ao nível da face de muito dos exemplares, no que respeita à representação dos olhos, orelhas, nariz e queixo, através da escultura, outros através da pintura. Note-se que a presença de orelhas, olhos e queixo esculpido não aparece em nenhum exemplar de mulher e curiosamente nenhuma figura de homem tem cabelo sem ser pintado. No entanto a diversidade de barbas, bigodes, suíças e cabelos (2 exemplares calvos) é grande. A lembrar quanto sumariou a propósito de barbas José Leite de Vasconcelos (em A Barba em Portugal), com efectiva aplicação ao corpus dos Bonecos de Santo Aleixo:

A barba como símbolo de virilidade e de honra; (...) Barba povoada e grave: em filósofos, em monges, em deuses, em reis; Outras manifestações sociológicas de barba: (...) castigos; A barba na opção jurídica; O sobrenatural na barba: feitiço, lenda; A barba como manifestação de tristeza (8).

Bibliografia:
Bonecos de Santo Aleixo (textos policopiados, Cendrev)
Constâncio, Natália, B. I. da Criação do Mundo, Lisboa, Apenas Livros, 2004.
Guimarães, Ana Paula, B. I. do Zarapelho, Lisboa, Apenas Livros, 2004.
Meireles, Maria Teresa & Freitas, Ana Maria, Os dez mandamentos dos contos. Lisboa, Apenas Livros, 2005.
Monteiro, D. António de Castro Xavier, Arcebispo de Mitilene (nihil obstat), Biblia Sagrada, Lisboa, 1968.
Schmidt, Joel, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Lisboa,Edições 70, p. 243.
Tavares, Jorge Campos, Dicionário de Santos. Porto,Lello Editores, 2004.
Vasconcelos, José Leite de, Signum Salominis, A Figa; A Barba em Portugal. Estudos de etnografia comparativa, Colecção Portugal de perto. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996.
_______

(1) A cultura popular (...) formula-se essencialmente em «artes de fazer» isto ou aquilo (...). Estas práticas põem em jogo uma ratio «Popular», uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, numa arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.Ana Paula Guimarães, B.I.do Zarapelho, Apenas Livros, Lisboa, 2004, p.31, citando Michel de Certeau, L`nvention du quotidien, I- Arts de faire. Paris 10/18, 1980, p.15.

(2) Confronte-se a condenação bíblica: «maldita seja a terra por tua causa! E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida» (Bíblia Sagrada, Génesis 3, 17).

(3)«Décimas religiosas», em José Leite de Vasconcelos, Cancioneiro Popular Português, vol. II, p. 480.

(4) Bíblia Sagrada, Génesis 3, 20.

(5) «Selene personifica a deusa Lua que, no céu grego reluz com grande brilho. Tem os traços de uma mulher jovem com o rosto de uma brancura reluzente (...)»,.Joel Schmidt, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Edições 70, p. 243.

(6)Maria Teresa Meireles, Ana Maria Freitas, Os dez mandamentos dos contos, Apenas Livros, Lisboa, 2005, p. 59.

(7)Natália Constâncio, B.I. da Criação do Mundo,Apenas Livros, Lisboa, 2004, p. 33.

(8) José Leite de Vasconcelos, Signum Salominis, A Figa; A Barba em Portugal, Estudos de Etnografia comparativa, Colecção Portugal de perto, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, p. 361.

 

black